trabalhar sábado: para destruir a morte

Fellipe dos Anjos
4 min readApr 3, 2021

— ensaio livre sobre o sábado da paixão de Cristo —

você sabe: o shabat desempenha um papel central na experiência religiosa judaica, portanto na experiência religiosa de jesus, o messias. o shabat é um tempo santificado. a santidade deste dia, sua observância e o dever de honrá-lo são enfatizados ao longo de toda torah.

com a morte de jesus, entretanto, essa experiência ancestral sofre um curto-circuito explosante. é verdade que jesus já havia confrontado de muitas maneiras as interpretações tradicionais sobre a santidade deste dia. mas, aqui, no sábado da sua paixão, o dilema da sua morte leva essa confrontação a níveis escandalosos. este é o primeiro e único shabat na história messiânica no qual Deus se esvazia do mundo e no qual o mundo está sofrendo a morte do seu criador. tudo geme, agoniza, se debate: Deus está morto. não há shalom no universo, a terra não descansa, Deus está morto. o tradicional tempo do descanso, da liberdade, da intensidade mais profunda da vida é transformado, pelo pecado da idolatria que leva ao assassinato do messias, em tempo de morte, vazio, perplexidade, silêncio e luto. pode ser que os sacerdotes corruptos tenham feito um shabat cheio de gozo e arrogância, mas, do lado de fora de suas individualidades diabólicas, o mundo inteiro gemia a morte do messias. não é possível acontecer um shabat no mundo sem que o messias esteja vivo e sustentando o universo com sua bondade e amor. neste sábado da paixão, o universo está em suspensão de santidade, sob a ameaça de perder todas as suas esperanças de redenção. não há shalom, porque não há justiça, paz e alegria. não há shalom, porque, até o momento, a idolatria e o sacrifício venceram. não há shalom, porque não há messias. este é o shabat do desespero, pelo menos para a criação e para aqueles judeus e judias que fizeram de Jesus o seu mestre e salvador. o dia-sem-trabalho em nome da santidade da vida é transformado num dia sem vida, por causa da idolatria da lei que matou jesus.

a casta sacerdotal nunca aceitou a reformulação ética de jesus: “o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado”. e justamente porque preferiram o sábado, a lei, a tradição congelada, mataram o ser humano jesus. porque o sábado foi mais importante para os homens da lei do que a santidade da vida do messias, agora, até mesmo o sábado agoniza. de tanto quererem defender o sábado, acabaram matando o sábado para todo o universo. ninguém poderá descansar agora. não há mais espaço e tempo para se descansar agora. a lei não apenas matou o humano; matou também o tempo de santidade dentro do qual o humano recuperava e santificava sua humanidade. não há sábado. a casta sacerdotal que matou jesus porque supostamente ele violou o sábado, deram a jesus mais um trabalho no sábado: o trabalho de lutar contra a morte. ai de nós se jesus não estivesse disposto a “violar o sábado” para salvar a vida humana. ai de nós se jesus não pensasse que o sábado foi feito para o humano. aí de nós se jesus decidisse descansar cinicamente, aceitando a sentença idolátrica daqueles que julgam falar e agir em nome de Deus. ai de nós!

a paixão de jesus inverte absolutamente tudo que se aprendera a respeito da lei e das tradições. neste sábado, além de jesus, ninguém que ainda tenha um coração de carne vai conseguir descansar. eles terão muito trabalho, muita elaboração psíquica, subjetiva, emocional, espiritual e ética para fazer diante do fato de que assassinaram o messias. vai dar muito trabalho lidar com essa realidade. o luto aí vai demandar muito movimento, esforço, memória e coragem.

você poderia me citar algum salmo para defender que a morte é um símbolo de descanso também. para defender que jesus, na verdade, teria “descansado das suas fadigas” neste sábado da sua paixão. no entanto, além dessa morte aqui não ter sido simbólica, seu corpo realmente foi torturado e morto numa máquina de terror do império romano sob os olhares idolátricos e cínicos da casta sacerdotal, eu diria que morte só é descanso para quem não tem a missão de destruí-la. o messias não pode descansar diante da morte. ela é sua única inimiga. é o que nos dizem os apóstolos: o messias só odeia a morte. para o messias, morte não pode significar descanso. e foi justamente assim que os primeiros discípulos interpretaram esse sábado da paixão: o tempo no qual o messias trabalhou para destruir a morte. enquanto o silêncio, a perplexidade, o luto e a impossibilidade do descanso reinavam sobre a face da terra, jesus “profanava” o sábado, mais uma vez, descia ao mortos para conquistar a vitória sobre a morte, para destruir de uma vez por todas as energias diabólicas que estão presentes em todos os modos idolátricos de matar em nome de Deus. no sábado, jesus trabalhou: destruiu nossas cadeias e nos libertou.

para que jesus, o descanso de Deus-entre-nós, seja, de fato, o nosso descanso, a letra da lei, a idolatria e o sacrifício precisam ser superados, destruídos de uma vez por todas. porque se não, se não houver sábado em jesus só nos restará a cruz, o silêncio, o luto e a morte. só nos restará a responsabilidade pesadíssima de termos assassinado o messias. Para que isto não aconteça, jesus precisa trabalhar no sábado. porque jesus é o sábado que vence o sacrifício.

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inspirações:

1 Pedro
Hebreus 2
1 Coríntios 15
Atos 2.24

E, se Cristo não ressuscitou,
logo é vã a nossa pregação,
e também é vã a vossa fé.
[1 Coríntios 15:14]

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