reconhecimento e gratidão

Fellipe dos Anjos
4 min readDec 20, 2020

é óbvio que este foi o ano da pandemia do novo coronavírus.

não há uma experiência humana e social que não tenha sido afetada por este fenômeno histórico.

a atenção geral e hegemônica das nossas sociedades se voltou à pandemia e aos seus impactos. milhões de pessoas perderam a vida. milhões de outras ficaram adoecidas.

lockdown, distanciamento social, crise respiratória aguda grave, COVID-19, negacionismos, vacinas, coronavac, xenofobia contra chineses — noções que contagiaram nossos discursos, relações e imaginações.

todavia, outra questão, e, apenas outra questão de porte universal, outro problema de asfixia, conseguiu dividir as atenções sociais com o problema da pandemia: o dilema racial.

o mundo adoecido em seus pulmões, se viu, mais uma vez, diante da asfixia racial que levou à morte de George Floyd em 25 de maio de 2020. "i can’t breathe": foram as últimas palavras de Floyd à uma humanidade que, por outras razões, também não conseguia respirar.

o racismo que mata lá, mata aqui, ali e alhures.

dias antes, 18 de Maio, aqui, em terra brasilis, João Pedro Mattos Pinto, adolescente de 14 anos, foi morto durante uma operação conjunta das polícias Civil e Federal no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo. De acordo com relatos de parentes, a polícia invadiu a casa e matou o menino. Um dos presentes teria gritado que só havia crianças na residência. não adiantou.

por aqui, a morte do adolescentes não foi capaz de produzir movimentação, indignação e protestos amplos, tamanho é o nosso estágio de apatia generalizada diante do racismo estrutural. com o caso de Floyd, porém, o conjunto vertiginoso da violência racial contemporânea veio à tona.

vírus e racismo se encontraram mais uma vez

foi o estopim!

os ciclos de protestos globais [#BlackLivesMatter] que sucederam este acontecimento traumático, deslocaram nosso olhar da problemática pandêmica e nos conduziram à realidade da injustiça racial que ainda estrutura as sociedades ocidentais contemporâneas.

faça-se memória, por justiça:
george floyd foi um homem negro americano que,
aos 46 anos, foi estrangulado por um policial branco,
que se ajoelhou em seu pescoço por 8 minutos,
enquanto implorava por sua vida.

a cena brutal foi filmada e reproduzida em todo mundo, quebrando o estupor generalizado para com a violência racial que organiza nossa sociedade, desde os fundamentos até as práticas políticas e culturais cotidianas.

estopim dos estopins

estes acontecimentos reivindicaram uma postura responsável e profética também por parte daquelas pessoas e organizações que se identificam como seguidoras do Evangelho de Jesus.

as diversas sociedades, em seus mais diferentes níveis de organização, estavam sendo cobradas por mudanças, por respostas transformadoras desta situação racial.

e, óbvio, as igrejas também não poderiam ser isentadas de responsabilidades sobre esta violência da qual participam tão ativamente. foram socialmente cobradas. justamente cobradas. cobradas a que deixassem suas posições de isenção, neutralidade e indiferença idolátricas diante do problema racial.

afinal, tal postura de mornidão e apatia são repugnantes perante o Espírito de Vida que flui dos evangelhos e da vida de Jesus.

neste contexto turbulento e desafiador, o ministério dos nossos irmãos e irmãs do fórum de consciência negra da IBAB foi determinante para que recebêssemos exortação, profecia, ministração e pastoreio em face do nosso pecado estrutural do racismo.

com sabedoria e inteligência exemplares,
nos exortaram por posição, clareza, responsabilidade política,
justiça, reconciliação e esperança de transformação.

o FCN fez um trabalho histórico entre nós!

neste ano tão difícil, fizeram com maestria um trabalho tão complexo, necessário e urgente. que, pela forma como foi desempenhado, tornou-se histórico e transcendental: uma real manifestação do sopro antirracista do Espírito entre nós, sobre nós.

por isso tudo, queremos reconhecer e agradecer.

a partir deste post, com uma série de postagens, na verdade, queremos apresentar a história, a visão, a missão, os testemunhos e as vidas que constroem o FCN como forma de reconhecê-los e agradecê-los.

reconhecimento significa trazer a existência à expressão, à visibilidade. como nos ensinam os evangelho de Jesus, trazer para a visibilidade aquela existência que a sociedade insiste em negar, excluir, violar.

reconhecer significa agir com intencionalidade para tirar da invisibilidade e da inexistência pública e política aquelas vidas que importam, que criam, que transformam, que intensificam graça e beleza em nossas relações.

por isso dizemos: vidas negras importam. porque sabemos e reconhecemos que, segundo lógica de poder vigente no mundo: elas não importam. são invisibilizadas, silenciadas, descartadas. a fé em Jesus é uma subversão deste tipo de sociedade racista e suas lógicas de segregação. o reconhecimento, em Cristo, é ato de subversão do poder da violência racista.

a vida social e a ética do amor dependem das nossas ações de trazer a visibilidade aquelas vidas que o poder da violência insiste em apagar, esquecer, silenciar, matar.

se queremos vidas vivas, vidas negras vivas, precisamos retirá-las deste lugar macabro de não-reconhecimento de existências que o racismo estrutural produz. reconhecimento, portanto, é uma ação política e espiritual de produção de vida, produção de abundância de vida.

reconhecimento:
é memória, justiça e gratidão.

assim como aprendemos nas páginas do novo testamento:

a quem honra, honra
a quem louvor, louvor
a quem dignifica, dignidade
a quem ensina, gratidão
a quem pastoreia, amor
a quem profetiza, escuta
a quem testemunha, atenção
a quem anuncia, respeito
a quem luta, reconhecimento
a quem sonha, justiça.

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