o marketing feiticeiro

Fellipe dos Anjos
8 min readApr 26, 2020

então, a feiticeira disse a saul:
vejo deuses que sobem da terra.
e ele lhe disse: como é a sua figura?
e disse ela: vem subindo um homem ancião e está envolto numa capa. entendendo saul que era samuel,
inclinou-se com o rosto em terra e se prostrou.

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“acaso tem o senhor tanto prazer
em holocaustos e em sacrifícios
quanto em que se obedeça
à sua palavra?

a obediência é melhor
do que o sacrifício,
e a submissão é melhor
do que a gordura de carneiros.

pois a rebeldia
é como o pecado da feitiçaria,
e a arrogância como o mal da idolatria.

assim como você rejeitou
a palavra do Senhor,
ele o rejeitou como rei”.

Saul and David — by Rembrandt

há no antigo testamento uma prática associada à idolatria que todos os profetas em israel condenavam s-ever-amente: a feitiçaria. mas, do que se trata?

feitiçaria não é a prática da religião do outro. devemos repensar isso, uma vez que para todos e todas nós, protestantes preconceituosos, a bíblia é, quase sempre, uma forma de condenar o outro. raramente consideramos que a bíblia possa estar criticando algo em nós mesmos.

retomando, feitiçaria é — em nível literário primeiro — o conceito que a sabedoria bíblica constrói para designar uma prática problemática na vida social do povo hebreu e para nos ensinar a pensar criticamente os mecanismos de ocultação e dissimulação no mundo das nossas relações. sim, a bíblia está preocupada em nos ensinar a pensar e a desvelar as mentiras do mundo.

mentiras estas que sempre vem ornamentadas de beleza, de verdade ou de poder. mentira ocultada por um belo projeto de design gráfico. feitiçaria.

feitiçaria é uma prática discursiva. ou seja, um fenômeno da palavra, como diriam os antigos hebreus. a palavra dissimuladora entra em contato com a imaginação da presa, daquela pessoa, ali, tão vulnerável à mentira, e distorce as camadas da realidade, transformando-a numa superfície gráfica-virtual que, por atender aos desejos dos enfeitiçados, passa ela, a imagem plana/rasa, a ser acreditada como verdadeira, como real. é como um simulacro, mesmo. um simulacro crido como real, por causa do encontro entre a obsessão do enfeitiçado e as palavras da feiticeira.

as principais matérias-primas das porções mágicas da feitiçaria no mundo são: letras, orações, verbos, conjunções, língua, signos, traços, pontos, códigos. materiais com os quais, no corpo, o feiticeiro trabalha suas magias e ilusionismos. o objetivo: enfeitiçar o outro, produzir figuras de morte em suas imaginações até que elas vejam aquilo que o feiticeiro quer. seu caldeirão hoje é o notebook e o celular repletos de aplicativos especializados em produzir imagens transmutadas do real.

as palavras do feiticeiro ou o ataque feiticeiro [já que se trata de um bote selvagem de um ser humano maldito contra outro refém da imagem que as palavras do feiticeiro produz] cria uma operação mágica-ilusória que captura, distorce, manipula e cria armadilhas para a capacidade de imaginação, pensamento e apreensão do real por parte do enfeitiçado.

os feiticeiros são aqueles que ocultam [por meio de palavras e imagens semi-verdadeiras] parte do que nos mostram. ou melhor, usam parte da verdade para nos contar uma mentira inteira. usam parte do real para nos ocultar o acesso ao real. magia pura. magia da palavra. magia da imagem-palavra contra a imaginação humana. um bloqueio sagaz e selvagem na capacidade do pensamento de fugir de representações violentas. em experiência de feitiçaria, o ser humano fica na impossibilidade de desenvolver toda a potência do pensamento. perde capacidade de interpretação. perde o real.

os feiticeiros foram condenados pelos profetas hebreus.
hoje, porém, eles são contratados pelas igrejas evangélicas no brasil.
os feiticeiros: dos gabinetes das fakenews às funções ministeriais.

tanto que,
como dizem por aí,
para se "ter" uma “igreja de sucesso”,
um "bom business religioso",
uma "silicon-valley-church",
você deve ter:

a) um pregador performático, [dominador da arte de transformar palavras em imagens e de congelar deus na imagem-ídolo. ou seja, de falar como se a sua verdade fosse a verdade do mundo];

a.1) bem-vestido [de preferência com as marcas, cores e cortes da última moda nas startup-church dos EUA];

a.2) bonito [segundo os critérios do mercado da imagem],

a.3) branco [porque o mercado da imagem é estruturalmente racista]

a.4) fitness [afinal de contas corpo é produto],

ainda que raso, superficial, narcisista, ególatra, isso não importa mais;

não posso esquecer de adicionar alguns elementos diferenciais.

é desejável: tattoos, calças skinnies, barba hipster-lenhador e bons pares de sneakers alá kanye west. face à impossibilidade de barba, que tenha ao menos um óculos maneiro e seja loirinho. deve-se observar que: quanto mais esteticamente transgressor, melhor para produzir o efeito de verdade, a performance desejável da imagem e a gestão dos desejos.

b) um ministério de louvor capaz de transformar culto em espetáculo

[afinal, no mercado da imagem, está em alta do discurso da UX — users experiences, segundo o qual excitação depende de intensidade de experiência estético-extática. ou seja, é preciso implica o corpo, os desejos, os sentidos, os instintos. velho jogo dos desejos que a religião sempre soube fazer, só que agora estilizado, automatizado, algoritmizado e robotizado];

c) um bom núcleo de design, edição de vídeo e comunicação

[ou seja, elementos essenciais para um bom posicionamento no mercado da estética, da imagem e das sensações. se não tiver um adolescente genial no design que tope fazer tudo de graça, pela graça, recomendável contratar uma agência profissional. considere, inclusive, que a agência é mais importante que o próprio pastor, afinal o que pastoreia as almas nesta sociedade da excitação e da estética é a imagem e não o humano. as pessoas viraram ovelhas guiadas por pixels, likes, profiles, canais e influencers — estes últimos representam a figura ideal (milimetricamente produzida) para o pastoreio do virtual, que eu quero chamar de pastoralismo cibernético. é aqui que nos encontramos no coração da feitiçaria contemporânea: fazer imagem parecer realidade. fazer views e likes se confundirem com vocação. fazer estética parecer unção. fazer instagram parecer comunidade].

os feiticeiros hoje são os marqueteiros, os designers gráficos, os editores de vídeo, os gestores de imagem, os UX-designers, os advogados trabalhistas das startups do mercado virtual. e eles trabalham para a igreja. tudo, para glória de Deus, claro. feitiçaria para glória de deus:

são aqueles mesmos marqueteiros e estrategistas de comercial do ifood que fazem você acreditar que jovem que pedala 80km por dia para fazer delivery é, na verdade, um empreendedor. e você acredita.

são aqueles mesmos marqueteiros que fazem você acreditar que o uber que passa 16h por dia dirigindo um carro no caos do trânsito da cidade de são paulo, sem direitos trabalhistas, endividado até a alma para locar o carro para trabalhar, sem nenhuma proteção em termos de segurança e saúde que não venham do seu próprio bolso, é, na verdade, um empreendedor. dono do seu próprio tempo. livre.

são aqueles mesmo que dizem que o airbnb é a maior rede de hotéis do mundo sem ter um único hotel que seja. e, você acredita. entendeu? como você pode ter uma rede de hotéis sem ter uma rede de hotéis? ter sem ter: como isso seria possível? na palavra é possível. mas, só na palavra. feitiçaria. este é o chamado capitalismo de plataforma, ou o sistema feiticeiro neoliberal.

feiticeiros são aqueles que pregam o empreendedorismo social,
como se todos os problemas do mundo pudessem ser resolvidos
pelos esforços individuais de voluntários não-militantes,
voluntários sem ideologias políticas,
que, na verdade, só querem fazer o "bem na prática".
quase uma caridade.
feitiçaria.

o que este discurso oculta?

entre milhares de outras coisas, o fato de que indivíduos voluntários não tem poder para modificar estruturas históricas de violência e opressão sem construírem uma luta coletiva, consciente, intencional, programática e explícita contra estas estruturas. fora disso, é sociológica e psicologicamente impossível.

o que este discurso oculta?

que o banco itaú, por exemplo, não investe em empreendedorismo social para salvar o mundo. mas, sim para que o mundo demore um pouco mais para acabar, para que eles continuem expropriando recursos e energias vitais das pessoas por meio de sistemas de juros exorbitantes e endividamentos brutais.

o discurso do empreendedorismo social — que faz os sujeitos pensarem que a vida política é, na verdade, como se fosse uma megaempresa que a gente administra na lógica do mercado — é uma estrutural feitiçaria.

nós estamos assim cada vez mais sujeitos às palavras enfeitiçadas. aquelas que fazem você acreditar que é um “colaborador que, se quiser, poderá “negociar” livremente com o seu patrão", como se não existissem relações abusivas de poder no mercado de trabalho. são aquelas que fazem você acreditar em meritocracia, como se tudo dependesse do seu esforço individual.

o que ocultam?

que os mercados globais foram construídos em cima de camadas profundíssimas de exploração, escravidão, racismos, desigualdades sociais, violências de gênero, exploração da natureza, extrativismo ambiental, de colonização do branco sobre o negro e do homem sobre a mulher, de lutas homéricas de interesses internacionais, de disputas sangrentas por poder e lucro. o discurso feiticeiro da meritocracia te faz acreditar que você, como indivíduo, seja quem você for, venha de onde você vier, não importando seu gênero, raça e classe, pode tudo que você quiser, desde que "se esforce". entendeu? feitiçaria pura.

"seja motivado",
"tenha um projeto",
"empreenda a si mesmo",
"future-se",
"tenha resiliência"
"trabalhe enquanto eles descansam"
"estude enquanto eles dormem":
as palavras da gestão (a motivação, o engajamento, a resiliência etc.) pertencem a dispositivos que funcionam como teias de aranha —
quanto mais nos debatemos contra, mais ficamos presos como moscas à beira da morte.

não há, nestes casos, nenhuma ilusão ideológica,
mas uma terrível eficácia feiticeira.
e, por quê funciona?
porque temos fé.
fé na mentira.

e, vale dizer: este não é um discurso “apenas” do mundo do trabalho.
é uma feitiçaria sistemática que colonizou radicalmente as igrejas
e as espiritualidades evangélicas no brasil atual.

não à toa as muitas reciprocidades discursivas entre as igrejas evangélicas
e o novo mundo do trabalho neoliberal.
o discurso patético do coaching teológico
é um trágico exemplo disso.

há outras feitiçarias, muitas outras.

mas, já chega, por hora. depois voltamos a conversar sobre isso.

feitiçarias: condenadas pelos profetas, adoradas pelas religiões.

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