imunidade/comunidade

Fellipe dos Anjos
5 min readMar 29, 2020

por fellipe dos anjos em 28.03.2020

Ambas as palavras derivam do radical latino MUNUS. Procedem daí: In-munus e Com-munus. Originalmente, a expressão munus, muito utilizada na filosofia política e no direito romano, significava “tarefa”, “dever”, “obrigação ou “encargo”. Suas raízes filológicas latinas mostram que a expressão pode significar, ainda, a noção de “emprego” ou “ofício”. Quando se dizia que um determinado sujeito tinha um munus a realizar, os romanos queriam dizer que ele tinha uma obrigação, uma tarefa. As munerações eram as funções oficiais no Império. E, quem quisesse comprar um cargo público, porque na época era assim, deveria pagar umas munerações. (digressão tola: será que isso continua acontecendo hoje?) É daí que vem a nossa ideia de re-muneração.

Aplicando esta análise à nossa atualidade, devemos pensar tanto i-munização quanto com-munidade nesta chave do encargo ou da tarefa. Em in-munidade, o sujeito tem uma obrigação consigo mesmo. Ele se vê como não tendo nenhum dever para com o coletivo ou para com o público. O prefixo (in) antes do radical munus indica uma negação individual da tarefa, da obrigação, do dever geralmente demandado pela existência material do outro. Já em com-munidade, o sujeito se vê como protagonista de um dever, um dever comum, como devedor a algo ou a alguém além dele mesmo. A tarefa do sujeito em com-munitas é realizar seu dever no contexto de uma comunidade. Ele se vê assim, encarregado, munerado, e espera de si mesmo que seja capaz de cumprir as tarefas que escolheu para ser útil à uma existência coletiva.

Teoricamente, então, imunidade seria o inverso da comunidade. Em situação imunológica o sujeito não deveria preocupar-se em estabelecer laços com quem quer que seja, já que, ali, sua atenção está voltada aos cuidados devidos à si mesmo. A imunidade romperia obrigações comuns e pertencimentos.

Se a imunização se assemelha a um “remédio” contra a violência que ameaça o ser humano, a mesma violência, ou pelo menos uma proporcional, virá a caracterizar os procedimentos imunitários. Imunizamo-nos contra o perigo de sermos destruídos pelo coletivo da comunidade. Esta é a tese moderna, por exemplo. Assim, essa se torna a lógica a fazer com que o discurso imunitário se desdobre em expressões de racismo, fascismo, xenofobismo e produção de inimigos. Há uma lógica de defesa imunológica que isola o indivíduo em si mesmo e transforma o outro num objeto a ser temido, evitado e, no limite, eliminado.

No entanto, nossa situação histórica diante da pandemia do COVID-19 é gritantemente PARADOXAL. O que estamos reivindicando hoje é um processo de imunização com vistas a proteger a existência da comunidade. É uma inversão absurda no discurso imunitário. Não estamos falando em imunização como negação do comum, do social e do político. Estamos, sim, dizendo que, se não nos cuidarmos, se não imunizarmos nosso corpo, podemos constituir um perigo de morte para a comunidade. E, porque não queremos que a comunidade morra, voltamos a pensar e a pedir a imunidade do nosso corpo. Paradoxo. Inversão. Talvez seja uma das primeiras vezes na história recente que o paradigma imunológico não se refira à proteções individuais e à defesas de privilégios para indivíduos. Trata-se de uma situação inédita e paradoxal de “imunização comunitária”, de distanciamento social para preservação do potencial vivo da comunidade. Imunizar para comungar. Distanciar para aproximar. Imunizar para cumprir uma tarefa coletiva, para cumprir um encargo social, para desempenhar um munus comunitário.

Este trabalho será muito difícil para os narcisistas, para os egoístas e para os individualistas. Mas, há saída. É possível, também, uma inversão, uma conversão de lógica, que seja libertadora até para essas pessoas. Há um caminho espiritual para transformar imunização em comunidade. Lembro-me das palavras do Apóstolo Paulo (Romanos 13.9): “a ninguém devais coisa alguma, a não ser o amor”. É como se Paulo dissesse: “A ninguém munizais coisa alguma”. Nesta hora, fico imaginando um sujeito vaidoso, egocêntrico, narcisista, ouvindo isso e dizendo: “eu sabia, não devo nada a ninguém! Minha(?) vida eu(?) só devo a mim mesmo!” Imunização narcísica: negação do outro, proteção de um suposto si-mesmo contra a diferença do outro, defesa contra o outro. Lógica de guerra, política de inimizade. Negação da comunidade, cuidado diabólico de um eu-absoluto. “Venha a mim o Reino”. Aí, Paulo diria, não sem uma dose de ironia, não sem aquele jogo de palavras que lhe é peculiar, fazendo uma sentença posterior anular e suspender a anterior: “Calma, tá apressado Lúcifer? Eu disse: a ninguém devais coisa alguma a não ser o amor. Ou seja, você tem um munus, sim, senhor! Seu munus é o amor ao mundo. Logo, não fará o menor sentido você pensar numa imunização que não seja por amor ao outro”. [Sorrisos apostólicos de canto de boca]. A isto, a este tipo de cuidado com a saúde da vida que se manifesta em desejo de preservação da vida do outro, a bíblia chama santidade.

Deus é santo porque deseja, doa, resgata e preserva a vida viva. E, nesse sentido, nós podemos imitá-Lo. Santidade não é o purismo isolacionista, a higiene ascética que se transforma em higienismo social, xenofobia, racismo, etnocentrismo, fascismo, campos de exterminação. Santidade não é a imunização moral do Um, do super-eu individualista.

Antes e além, santidade diz respeito à saúde integral e radical da comunidade como efeito espiritual, teológico-político e ecológico dos cuidados que a pessoa exerce sobre si mesmo e sobre o mundo do comum. Não existe indivíduo e lógica imunológica nos evangelhos. O que existe é comunhão e trabalho de cuidado de si para que a comunhão seja preservada saudável e íntegra. Em Jesus aprendemos: imunizamos nosso corpo como gesto de amor e de cuidado do outro.

Portanto, cuide-se. Cuide do seu corpo, Cuide da sua saúde. Fique em casa. Imunize o mundo do vírus da sua ganância. Imunize o mundo do vírus da sua indiferença. Imunize o mundo da sua irresponsabilidade para com a saúde do próximo. Imunize o mundo do seu negacionismo. Imunize o mundo do seu egocentrismo. Fique em casa. Passa álcool gel na mão. Imunize-se. Santifique-se. Atualmente, este será o seu maior gesto de amor ao próximo.

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