entre drones e almas

Fellipe dos Anjos
7 min readMar 31, 2020

por uma teologia da libertação do corpo [01 de 04]

“Encarnar é apresentar-se a si mesmo como um corpo, como este particular corpo, sem ser identificado com ele nem distinto dele — sendo que identificação e distinção são operações correlatas que só tem significado no âmbito dos objetos.” // Gabriel Marcel, existencialista cristão, em Creative Fidelity (Du Rufus à L’Invocation)

INTRO:

(Você pode pular se quiser, tipo aqueles comerciais de abertura de vídeo de youtube):

Meu projeto nestas LIVES é produzir uma reflexão teológica experimental em diálogo com as múltiplas tradições bíblicas que colaboram com a liberação dos corpos (e das corporeidades) dos dispositivos normativos, colonizadores e controladores instalados sobre eles pela performance discursiva dos fundamentalismos religiosos e políticos do ocidente. Quero criar, relembrar e/ou sugerir caminhos de espiritualidade que afirmem o corpo — e as corporeidades todas — como lugar primordial de relação com o Sagrado, com o Próximo, com o Mundo e com a História. Explorar as teologias bíblicas e suas possibilidades libertadoras dos corpos e subjetividades. Pensar em como — após o mapeamento e desinstalação do que pode ser nomeado como um “arsenal de complexos colonizadores” (FANON) que pairam vultuosamente sobre o corpo — ele pode manifestar novas inspirações teológicas e novas implicações políticas marcadas pela liberdade e pelo amor, que, no limite, é a identidade que importa. Penso em fazer isso avaliando genealogias e reproduções teológicas cristãs sobre o corpo. Escolho o cristianismo hegemônico como caminho de crítica e os cristianismos minoritário e marginais como linhas de resistência ou inovação ética principalmente porque a maioria das forças ideológicas de repressão do corpo no ocidente foram construídas a partir deste referencial teológico-político; Logo, qualquer programa teológico de libertação do corpo e das corporeidades precisam considerar tarefa-chave as releituras críticas destas tradições. Em outras palavras, se os mecanismos de repressão e violência sobre o corpo foram desenhados e operados, em grande parte, pelo cristianismo ocidental, seja pelo uso oportunista de suas crenças, por manipulação política de seus escritos ou pela força da inculturação da crença; então, obviamente, qualquer tentativa de superação destas lógicas precisa analisar preferencialmente as movimentações e produções destas tradições na história. Quero apontar as interdições, sinalizar violências limitadoras e ressaltar as potencialidades da alegria de ser corpo. Dialogar com as histórias do corpo nas teologias e nas ciências humanas, sociais e políticas. Cada sociedade em seu tempo percebeu com nuances de baixa oscilação e dentro de um campo negativo a relação do corpo com o Mistério. E essas percepções, às vezes no modo de crença sistemática, determinaram uma série de projetos políticos sobre o corpo e as corporeidades. O que quero dizer é que há antropologias teológicas específicas, criadas sob condições políticas específicas e sob necessidades estratégias das igrejas, operando no fundo das lutas políticas que marcam o corpo: que ferem, violentam, colonizam, libertam ou alegram o corpo. É também por uma percepção teológica sobre o corpo — o que ele é e o que deve suportar — que projetos de controle e dominação sobre os corpos se justificam ou legitimam. Argumentos racistas, por exemplo, são argumentos sobre corpos que — em determinados arranjos ideológicos/políticos — devem ser inferiorizados, explorados, vendidos, escravizados. Argumentos militarizantes e belicosos são, em última instância, argumentos sobre os corpos que devem ser vigiados, punidos ou mortos. No fundo, são ideologias teológicas sobre o corpo e sobre como ele deve ser governado. E por aí segue.

1.

Para realizar este projeto teológico-político precisamos encarar alguns problemas ideológicos que incidem sobre o corpo, o gênero e as sexualidades no contexto das religiosidades cristãs ocidentais e criam políticas de gênero e sexualidades repressoras da potência do corpo. O primeiro e mais decisivo deles é o problema da recepção e uso do dualismo platônico ideia x coisas na teologia, do qual derivam uma série de abstrações e dualismos ontológicos, entre eles o dualismo corpo x alma, que marcam grande parte das percepções e políticas cristãs sobre o corpo, os prazeres, as alegrias e os desejos. Católicos e protestantes estão alinhados nesse específico.

O problema fundamental: o dualismo corpo — alma

Embora não tenha sido o inventor da ideia, atribui-se a Platão o vigoroso desenvolvimento teórico desta visão dicotômica. Segundo o esquema do pensamento platônico, há uma ruptura ontológica e qualitativa entre a ideia e a coisa. As coisas pertenceriam ao mundo do sensível, caracterizado como ilusório, temporal e mutável. Já as ideias pertenceriam a um outro mundo, superior, o da realidade divina, eterna e imutável. A verdadeira realidade encontrar-se-ia unicamente além das aparências das coisas, além do mundo sensível e banal, no mundo das ideias. As coisas no mundo material seriam apenas cópias imperfeitas do mundo ideal, o mundo verdadeiro. Esse é o ponto de partida para os dualismos derivados. Em perspectiva antropológica, é como se os dois mundos estivessem presentes no humano: na alma, o mundo das ideias; no corpo, o mundo das coisas. O corpo, imperfeito e precário que seria, participaria imperfeitamente de uma ideia, enquanto a alma, elevada e superior, pertenceria ao mundo eterno e divino das ideias. A alma seria o ponto de conexão entre o humano e mundo eterno, verdeiro e imutável. Esta, incorruptível e imortal, preexistente ao corpo e à história, perderia, uma vez encarnada, o contato direto e perfeito com o mundo das ideias, precisando, então, utilizar as experiências das coisas — do corpo — como forma de acesso ao outro mundo. O corpo seria um mero instrumento da vida verdadeira da alma que busca o mundo além e superior da eternidade. Alma e corpo, portanto, deveriam ser tratados separadamente porque pertencem a mundos qualitativamente distintos.

No Fédon, por exemplo, obra do período médio de Platão, a relação é apresentada de maneira fortemente negativa: a alma se encontra prisioneira do corpo e dos sentidos; já o corpo seria a limitação da alma, ou seja, aquilo que deve ser superado, negado o quanto possível. Sábio seria aquele que deseja a morte, a morte do mundo das sensibilidades, para se libertar do corpo. Isso mesmo: se libertar DO CORPO. Um pouco mais à frente, no último período de sua vida, Platão minimiza a carga negativa do corpo, mas, ainda assim, só consegue enxerga-lo como instrumento da alma, naquela velha metáfora onde o corpo seria o navio e a alma o marinheiro. Novamente, não pode ser negado que a doutrina dos dois mundos (ideia e coisa) e a negatividade do corpo marcam fortemente o pensamento de Platão e todo pensamento ocidental/religioso, especialmente mediante ao neoplatonismo médio.

2.

Reconhecendo a imprecisão comum (e óbvia) a todas as metáforas, coloco aqui a minha, roubada das rimas do Emicida: a ideia do Drone e da Alma, uma tentativa de atualizar a dicotomia corpo X alma em linguagem tecnológica. Nós, cristãos ocidentais, educados nas moralidades católica e protestante, concebemos o corpo como um drone: um veículo, um instrumento, uma tecnologia utilitarista controlada remotamente por uma inteligência virtual chamada alma. O corpo como drone: tripulado pelo virtual, comandado pelo virtual. Uma ferramenta descartável, manipulada à distância, que não toca o mundo sensível, apenas sobrevoa a realidade controlada por abstrações e idealizações dela mesmo. O corpo é um drone: uma mescla de obsolescência material e inteligência remota pronta e ideal às manipulações diversas, entre as principais as de motivação militares. Um mero drone equipado com tecnologias de poder e sempre disposto às guerras e aos trabalhos precários. Aliás, no drone não acontece nada de real. Ele é pura função, objeto de labor estratégico. O drone é entregue ao uso, apenas. E a alma, é a cons-ciência perfeita, a pessoalidade ideal que não pode se contaminar com as contradições e tensões do mundo material, que não pode se corromper com o mundo. A alma, nesse contexto, é entendida como a vida que importa, como aquilo que habita virtualmente o corpo para fazer dele sua ferramenta estratégica de colonização ou salvação.

A penetração deste esquema platônico nas teologias cristãs ocidentais acentuou o valor da alma em contraposição à uma imoralidade do corpo — dos desejos, dos prazeres e do sofrimento. O corpo foi recorrentemente percebido e anunciado como inimigo de Deus. Em decorrência disso, os cristianismos passaram a ser vistos, não sem razão, como “ferozes inimigos do corpo e da vida”, como diria Nietzsche. Essa abstração revela-se um obstáculo a ser superado por aqueles que desejam libertar os corpos dos cativeiros ideológicos e biopolíticos criados por religiosidades alienantes e castradoras. Vale a lembrança inicial que esta abstração é uma perversão do sentido do corpo, tanto nas teologias bíblicas do Antigo Testamento, quanto do Novo Testamento. Os Evangelhos e as tradições proféticas também comunicam uma outra antropologia teológica e um outro horizonte de possibilidades ao corpo. Mas, isso é assunto para os próximos textos. Por enquanto, precisamos entender as raízes do problema.

A ideia desta sequência de estudos é superar essa compreensão reducionista e repressora do corpo. Superar o corpo como instrumento, como objeto de exercícios religiosos/ideológicos. Para tanto, vou apresentar nas próximas partes do “Entre drones e almas: por uma teologia da libertação do corpo” as implicações e consequências da instalação dessa abstração platônica no cristianismo e as alternativas teológicas para superação/subversão desta violência. Se quiser, vamos juntos e juntas.

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